As relações trabalhistas, até mesmo antes do estado de calamidade pública, sofreram amplas alterações que na prática refletem negativamente no contato entre empregadores e trabalhadores.
A Reforma Trabalhista ainda é considerada relativamente nova e com muitos pontos ainda divergentes, sendo constantemente requisitada a apreciação judicial para conferir a devida interpretação ante ao caso concreto. Contudo, mesmo diante da recente alteração da CLT, novos regramentos para as relações de trabalho foram editados agravando ainda mais as controvérsias nessa área.
Com a decretação do estado de calamidade pública o quadro de controvérsias envolvendo as relações de trabalho se acentuaram de modo exponencial, embora em certa medida se configurou como necessária a adoção de alternativas visando a preservação de empregos e conferir condições de trabalho para todos os trabalhadores.
Assim, as medidas adotadas de fato apresentam o intuito de atender a uma necessidade emergencial, mas além de todas as polêmicas já apontadas desde o início da pandemia, muitos outros conflitos serão reflexos dessas medidas influenciando até mesmo outros campos, tal como o tributário.
Atualmente, as relações de trabalho se encontram estruturadas em uma série de Medidas Provisórias, as quais se destacam a MP 927/2020 e a MP 936/2020.
Conforme a disposição do artigo 1º da MP 927/2020 a finalidade das medidas adotadas são a preservação do emprego e da renda diante do estado de calamidade pública. Assim, a medida busca trazer possibilidades a serem adotadas entre empregadores e trabalhadores buscando reduzir o percentual de demissões. Com o mesmo intuito a MP 936/2020 cria o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
No entanto, ambas as medidas implicam em uma série de reflexos que ainda se configuram como grandes incertezas tanto para os trabalhadores quanto para os empregadores.
PONTOS DE INSEGURANÇA
Um primeiro ponto para o cenário de insegurança instaurado se configura a partir do disposto no artigo 2º da MP 927/2020 ao determinar a prevalência do acordo individual de trabalho sobre outras norma, salvo a Constituição Federal, assim é conferida ao empregador e ao empregado a possibilidade de efetuarem um acordo para disciplinar a relação entre eles que uma vez não violando dispositivos constitucionais terá aplicação válida para os desdobramentos da relação de emprego.
O dispositivo cria, portanto, uma insegurança jurídica para ambas as partes da relação e em especial ao trabalhador que já figura em uma condição de hipossuficiência na relação e justamente por essa razão ao direito do trabalho aplica-se ao princípio de proteção visando o equilíbrio dessa relação, mas diante do dispositivo se torna dificultosa a aplicação desse e por consequência a obtenção de um equilíbrio na relação estabelecida.
Em seguida o artigo 3° da MP 927/2020 enumera as medidas possíveis de serem adotadas pelos empregadores para a continuidade da relação de trabalho, quais sejam o teletrabalho, a antecipação de férias individuais, a concessão de férias coletivas, o aproveitamento e a antecipação de feriados, o banco de horas, a suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho, o direcionamento do trabalhador para qualificação e o diferimento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS.
Dentre as medidas elencadas as principais que estão sendo adotadas pelos empregadores são o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e o banco de horas. Contudo, estas comportam algumas implicações no sentido da aplicabilidade dessas medidas tanto no presente como nos reflexos futuros dessas medidas.
O TELETRABALHO
É uma medida de grande aplicabilidade para a preservação dos empregos, no entanto sua adoção na forma do artigo 4º da MP 927/2020 carece de prévio aviso ao trabalhador com antecedência mínima de 48 horas, bem como deve ser firmado em até 30 dias a partir do início do trabalho nessa modalidade um contrato escrito no qual seja estabelecido a responsabilidade pelos equipamentos e despesas necessárias para o desenvolvimento do trabalho. Sobre esse importa ainda ressaltar que nos termos do artigo 5° da MP 927/2020 ao aprendiz e ao estagiário também pode ser aplicado esse regime.
ANTECIPAÇÃO DE FÉRIAS INDIVIDUAIS
Tem disposição nos artigos 6º a 10 da MP 927/2020 e pode ser considerada como uma medida que a depender do caso pode se configurar como extremamente prejudicial ao empregado uma vez que nos dispositivos legais há previsão de que mesmo não transcorrido período aquisitivo para férias essas podem ser antecipadas, no entanto não há previsão de quantos períodos aquisitivos futuros podem ser utilizados e em contrapartida prevê mais uma vez a possibilidade de acordo individual em que empregador e empregado podem negociar períodos futuros de férias.
O BANCO DE HORAS
Já com relação ao banco de horas, nos moldes do artigo 14 da MP 927/2020 é possível que a jornada de trabalho seja compensada podendo o empregado ter um banco de horas negativo no qual a compensação deve ocorrer em até 18 meses após o término do estado de calamidade pública, podendo ser compensadas as horas na proporção de 2 horas por dia. Assim, nesse aspecto, mais uma implicação negativa terá o empregado que a depender do tempo acumulado em banco de horas futuramente terá que trabalhar em jornadas ampliadas continuamente e por um grande período de tempo.
A MP 936/2020
Através da MP 936/2020 novas medidas foram editadas visando, nos termos do artigo 2º, preservar o emprego e a renda, garantir a continuidade das atividades laborais e empresariais e reduzir o impacto social decorrente das consequências do estado de calamidade pública e de emergência de saúde pública. A Medida Provisória estabelece o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários e a suspensão temporária do contrato de trabalho, que impactam significativamente a relação de trabalho, em especial no que se refere ao trabalhador.
Nesse sentido, importante destacar que a Medida Provisória também confere especial relevância aos acordos individuais, de modo que por essa razão tramita no STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363, já com decisão liminar determinando a necessidade de comunicação do sindicato no prazo de 10 dias para manifestação sobre o acordo individual celebrado sobre suspensão do contrato de trabalho e redução de jornada e salário.
SUSPENSÃO DOS CONTRATOS DE TRABALHO
A suspensão do contrato de trabalho tem previsão no artigo 8º da MP 936/2020 e por este a suspensão poderá ocorrer por um prazo de até 60 dias, que pode ser fracionado em dois períodos recebendo o empregado seguro desemprego e tendo o direito de receber os benefícios que já eram concedidos pelo empregador, salvo nesse caso o vale transporte uma vez que esse é pago como antecipação do valores suportados pelo empregado para se deslocar até o seu local de trabalho. Contudo, cabe a ressalva que uma vez adotada essa medida o trabalhador adquire um período de estabilidade no emprego correspondente ao período de suspensão do contrato.
REDUÇÃO DA JORNADA DE TRABALHO
Poderá ainda ser adotada a redução da jornada trabalho e de salário de forma que o valor correspondente a redução de salário será proporcional ao percentual da redução da jornada de trabalho, contudo deve ser preservado o valor do salário hora. Nesse caso igualmente o período da medida pode ser adotado por até 60 dias e o empregado terá o equivalente a redução convertido em estabilidade no emprego.
No caso da redução da jornada trabalho e de salário e suspensão do contrato de trabalho o empregado receberá o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda na proporção da redução acordada e baseando no valor do seguro desemprego.
Desse modo, o que se nota é que grande parte das medidas possíveis apresentam prazos máximos ou a sua extensão por períodos muito longos pode resultar em uma prestação de trabalho excessiva pelo empregado, de forma que essas medidas embora tenham sido necessárias para a preservação de muitos empregos não são medidas duradouras e suficientes para contemplar todo o período do estado de calamidade pública, bem como representam uma grande incerteza jurídica no âmbito das relações trabalhistas uma vez que muitas dessas medidas são alvo de controvérsias que estão e por continuaram ainda por um período de tempo sendo levadas à apreciação do Poder Judiciário.
As medidas também causam reflexos no âmbito tributário eis que alguns tributos tiveram seu prazo prorrogado. Por meio da Portaria nº 139/2020 foi prorrogado o prazo para o recolhimento de tributos federais referentes aos meses de março e abril para agosto e outubro, nos quais estão contemplados a contribuição previdenciária patronal, a contribuição previdenciária paga pelo empregador doméstico, a COFINS e a PIS/PASEP, dentro outras contribuições direcionadas a categorias profissionais específicas.
SUSPENSÃO DO FGTS
A MP 927/2020 contempla uma disposição destinada ao empregador ao determinar a suspensão do recolhimento do FGTS relativo aos meses de março, abril e maio, podendo essa medida, dentre outros requisitos, ser adotada independentemente do regime de tributação adotado pelo empregador, bem como a possibilidade de parcelamento do valor devido sem acréscimos, salvo no caso de rescisão do contrato de trabalho em que o valor deverá ser antecipado.
Contudo, sobre o tema posteriormente foi editada a MP 946/2020 pela qual se extinguiu o Fundo PIS - Pasep e determinou a transferência de seu patrimônio para o FGTS, de forma a contemplar ainda a autorização do saque FGTS no período entre 15 de junho de 2020 e 31 de dezembro de 2020 no limite de até R$1.045,00 para cada trabalhador.
Dessa forma, uma nova controvérsia foi instaurada dado que ao saque do FGTS terá grande contribuição para a situação financeira dos trabalhadores, no entanto dois pontos são necessários de serem considerados dado, em especial no campo do direito tributário que a contribuição PIS/ PASEP tem regramento previsto em Lei Complementar, bem como apresenta previsão constitucional e sendo assim não poderia ser utilizado para extinção dessas contribuições o instrumento da Medida Provisória.
Como segundo ponto tem-se que o prazo previsto para o saque não está contemplado pelo prazo de validade da Medida Provisória, sendo mais uma vez um ponto de incerteza para os trabalhadores.
Portanto, inúmeros são os impactos das relações de trabalho uma vez que não apenas todas as implicações que já foram levantadas em razão das disposições contidas nas Medidas Provisórias que proporcionaram até mesmo a edição de novas Medidas Provisórias para sanar controvérsias contidas nessas disposições, como é o caso da MP 928/2020 que foi editada no dia seguinte da MP 927/2020 com a finalidade de revogar um dispositivo nela contido a respeito do direcionamento do trabalhador para programas de qualificação com suspensão do contrato de trabalho.
Assim, o que se tem atualmente é um grande cenário de insegurança jurídica que já se instalava sobre as relações de trabalho em razão da Reforma Trabalhista e outras medidas editadas posteriormente a ela que criam um panorama de instabilidade e desproporcionalidade nas relações de trabalho e que será exponencialmente agravada como as novas determinações contidas nas Medidas Provisórias em razão da necessidade de adoção de medidas para evitar rescisões de contratos de trabalho.
De igual modo, a insegurança jurídica produzida no âmbito trabalhista traz expressivos reflexos para o campo tributário diante das incertezas promovidas pelas Medidas Provisórias que tratam de matéria trabalhista.
Dessa forma, o cerne da insegurança jurídica fica assim: ao empregador resta a incerteza dos limites que pode estipular ao seus trabalhadores e a estes, por sua vez, resta a incerteza dos limites que pode aceitar (ou se sujeitar) com o intuito de manter seu emprego, sem deixar, é claro, que a temporariedade das normas provocam uma incerteza muito grande, mais do que os próprios rumos que podem tomar esse período que estamos vivendo de calamidade pública.
Ana Beatriz da Silva
ana_beatriz_silva@yahoo.com.br
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